2020-11-12
Gonçalo Ribeiro Telles, engenheiro agrónomo e arquitecto paisagista, ecologista desde a primeira hora, Professor Catedrático, co-fundador do Partido Popular Monárquico e do Movimento O Partido da Terra, mentor da política nacional de Ambiente e Ordenamento do Território, Secretário de Estado do Ambiente, Ministro de Estado e da Qualidade de Vida, deputado, alfacinha desassossegado e homem de bem e sapiência, é um marco incontornável do universo semântico e físico da Paisagem tout court. No atelier do mestre Ribeiro Telles, o Pessoas e Lugares recebeu uma lição sobre a ausência de fronteiras entre a paisagem rural e a paisagem urbana...
O que é a paisagem?
A paisagem é tudo. É um diagnóstico de uma organização humana do território. A paisagem não é natural. É construída com elementos naturais. É do Homem, como uma casa. O Homem faz a paisagem com materiais vivos e com solo duro. É uma construção artificial, baseada nas leis da Natureza. Os seus elementos estão sujeitos à Lei da Vida. Portanto, há uma dinâmica e lógica da paisagem, da parte essencial da paisagem. Não podemos separar a paisagem e tratá-la como uma “coisa” para o turismo ou como um valor apenas de cenário.
Com que olhos as pessoas da cidade vêem o mundo rural?
O mundo urbano olha para o mundo rural de variadíssimas maneiras: uns com saudades, porque se lembram da sua terra; outros como um sítio óptimo para se passear e merendar e outros como algo que é miserável. São as três vistas urbanas. Aqueles que pensam que é miserável, vieram da miséria, recentemente, para a cidade. Renegam as origens. Os emigrantes fugiram porque se vivia muito mal nas aldeias. Foram-se embora não com saudade, mas com inveja de cá não ser como lá. As duas últimas gerações vêem a coisa de maneira totalmente diferente. Se for ao Norte, a primeira geração de emigrantes tinha que mostrar que não era miserável. As casas ostentavam luxo. Os filhos e os netos já não querem aquela casa. Hoje, ou mora lá uma tia velha, a apodrecer de reumático ou está fechada. Quando a segunda e a terceira geração regressa, volta para recuperar as casas antigas da aldeia.
Numa entrevista à revista Visão (14 de Agosto de 2003) referiu a existência de “uma política de desprestígio do mundo rural” por parte do mundo urbano. Há uma visão negativa do mundo rural por parte dos urbanos?
Não é uma visão das pessoas da cidade, é dos responsáveis. Senão não víamos os disparates que vão aí pelas autarquias, em termos de planeamento, com as fontes luminosas, os relvados à escocesa, etc. Estão agora a começar a destruir Guimarães, destruíram Braga, destruíram Vila Real, transformando toda a sua envolvência e intervenção rural em espaços para construir desde moradias até blocos monstruosos.
Concretizando…
Os Governos, os responsáveis políticos, os economistas e a mentalidade urbana, influenciada pelo poder, disseram que a agricultura estava condenada no país, caso não se transformasse num sector de grandes empresas agro-industriais e de monoculturas extensivas. Esta política presidiu à florestação, para o fornecimento das empresas de celulose, tendo o fim trágico a que assistimos este Verão e que, possivelmente, irá repetir-se se não houver uma mudança de 360 graus do que se pensa que é a agricultura e a ruralidade. As universidades viram na agricultura, não uma cultura, mas uma economia. O que não quer dizer que uma cultura não tenha que ter uma base económica. Não pode ser, exclusivamente, uma economia. Tem que ter uma base cultural. Grande parte da identidade do país e da sua independência resultam da identidade cultural, tendo por factor fundamental a agricultura. A agricultura condiciona totalmente, é a matriz da paisagem total, da paisagem global.
A política florestal está a ser um desastre. Num país mediterrânico a floresta faz parte do teatro agrícola e o teatro agrícola faz parte do teatro da floresta. Agora dizem que vão manter uns corredores agrícolas por causa dos incêndios. Mas com os corredores agrícolas, aparece população, população que eles não querem lá, porque senão tem o problema das escolas. Por que é que estão a despejar as escolas? Não há crianças. É um círculo vicioso. É provocado pelo modelo económico, que não é um modelo de desenvolvimento. Quando se fecha uma escola, a região é mandada para o “galheiro”. Não tem gente, porque puseram lá uma monocultura. A população não fica lá “a ver crescer o pau” que ainda por cima não é deles.
Faz sentido optar por um modelo de “desenvolvimento” em que mais de metade do país está despovoado?
Não faz sentido nenhum. O resultado está à vista. O mais grave é a falta até de identidade cultural do país. Uma pessoa para poder ser patriota tem que organizar-se em função do local onde nasceu, do local onde vive, do cemitério, do futuro... Estragaram isso tudo. O indivíduo fica ligado a uma empresa. Mais uma razão para as comunidades não serem urbanas, mas sim territoriais. É terra, a “nossa terra”, ninguém diz o “nosso urbano”. Isto é trágico.
Enquanto defensor da regionalização, que opinião tem dos novos modelos de organização dos municípios (Leis nº10 e nº11/2003)?
Já foram objecto de publicação em 1971, como regiões naturais e como base da regionalização do país. Eu sempre pensei que a regionalização não podia ser de grandes regiões, nem de pequeníssimas regiões, tinha que ser uma regionalização das regiões naturais do País. As regiões naturais do País, são regiões culturais e históricas, porque já têm uma relação secular entre o Homem e o Território. Todas têm nomes próprios, um nome histórico: Terras de Sousa; Terras de Basto, Terras de Santa Maria,... principalmente no Norte, onde domina a bacia hidrográfica e o vale. No Sul, as regiões formaram-se à volta dos centros militares: Évora, Beja... São regiões naturais com uma unidade quer cultural, quer geográfica, quer agrícola.
Pode resumir-se numa “identidade”?
É a nossa identidade unitária. O problema é que agora querem chamar “comunidades urbanas” a essas regiões que correspondem a unidades de planeamento. Não são urbanas. As Terras de Sousa não é uma comunidade urbana, é uma comunidade territorial, histórica, polivalente, com uma riqueza de recursos, onde não se pode desprezar a agricultura.
Mesmo assim estamos no bom caminho?
Se lhe põem o carimbo urbano, estamos em muito mau caminho. Estamos em bom caminho se aceitarmos aquela solução geográfica da região natural com identidade geográfica, cultural e histórica. Agora se é para fazer casas, se é para desprezar novamente a agricultura, estamos mal. Por que é que não havemos de ter comunidades territoriais, como “Terras de ...”, onde funciona a polivalência mediterrânica.
Onde começa e onde acaba a paisagem urbana e a paisagem rural?
Não há separações, paisagem urbana e paisagem rural. Por muito que custe aos urbanistas e até às pessoas do Planeamento, essas fronteiras estão a desaparecer diariamente. A primeira causa da interligação entre o espaço rural e o espaço urbano, tem que ver com as novas tecnologias. As distâncias percorrem-se em muito menos tempo, através de um sistema de comunicação. Mais de 30 por cento das pessoas que fazem agricultura na Europa são activos agricultores. São pessoas que vivem na cidade e que tem uma actividade económica no campo, ou seja, vão três dias por semana ao campo de forma activa. Não vão fazer recreio. Por exemplo em Portugal, Bragança já está a sentir esse aspecto. Grande parte das pessoas jovens que trabalham em Bragança, estão a fazer uma transformação de paisagem muito importante. Todas as terras de centeio em torno das aldeias, a cerca de oito ou nove quilómetros de Bragança, segundo um estudo da UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro), estão a ser transformados em soutos, aproveitando a valorização da madeira e da castanha. Isto permite-lhes não estar permanentemente na aldeia, trabalhar na cidade e ir para o campo ao fim-de-semana. Com esta transformação de paisagem, ressurgiu também a pastorícia, que estava a morrer, pois segundo o direito consuetudinário da região os soutos podem ser pastados por quem tiver um rebanho.
Como é que definiria a paisagem rural de hoje?
A paisagem é a expressão do espaço que é vivido pelo Homem. É a imagem, a expressão física, a visualização do espaço que é vivido pelo Homem. A bio-diversidade e a forma da paisagem são importantíssimas. A paisagem é mais rica, quanto mais polivalente. A segurança é maior numa paisagem polivalente, do que numa paisagem só com uma valência. Uma polivalência é uma paisagem que tem vinho, seara, rega, pomares...
E para além da agricultura?
A polivalência não é só no sentido agrícola, mas também de actividade. Com a vida, com o desenvolvimento das técnicas e das actividades, as valências aumentaram, principalmente as valências que não eram resultantes do solo. As outras com o avanço da tecnologia cresceram muito rapidamente num intervalo de tempo curto. Para além da terra, havia o artesanato como forma de indústria. Até ao século XIX, nota-se uma polivalência de actividades, que não há noutros países aqui no Mediterrânico, e que não há no Norte de Europa. Quando industrializamos tudo, a polivalência e a segurança desaparecem. Por exemplo, a indústria da celulose ficou dependente da competitividade com o Brasil e com Angola. Possivelmente, acabarão por plantar eucaliptos por todo o Minho. Se transportarmos isto para o aumento do PIB (Produto Interno Bruto), rende muito mais do que uma cultura qualquer com agricultura. Os economistas são culpados desta mentalidade economicista em Portugal. E ainda querem reduzir a três por cento os activos agrícolas. O que corresponde a um movimento de 500 000 pessoas em direcção ao Litoral.
Hoje ainda existe dinheiro, tempo e espaço para mudar o curso das coisas?
Tem que ser, senão estamos no Terceiro Mundo. A culpa é da Universidade que, de certo modo, determina a mentalidade. A culpa é dos responsáveis, das camadas políticas superiores, que são incapazes e incultos. Por isso, a dificuldade de se trabalhar aqui em Portugal. Não creiamos que a paisagem é um cenário para vender o Euro 2004, ou um cenário de turismo. A paisagem é bela, porque é tal como a organização do Homem com as vertentes da vida. Tem que ser harmónica. É um diagnóstico. Senão caímos naquela “parvoíce” de que a única paisagem que está certa é a paisagem da floresta virgem, que não é paisagem, mas uma ocorrência natural. A paisagem quer dizer pais, região + -agem, agir, ou seja, agir sobre a região. Quem age sobre a região, é o Homem. A paisagem é uma construção humana, feita, fundamentalmente, com materiais vivos. Há cerca de 50 anos, o que era contínuo na paisagem era o sistema natural. Tudo isto era uma paisagem, onde o sistema natural dominava, e era contínuo. As cidades eram pontos nessa continuidade de espaço natural, agrícola, florestal, de pastagens ou abandonado. Hoje, é exactamente o contrário, o contínuo na paisagem é o construído, e o pontual, é o que resta de agricultura, de espaço livre, que passou a ser descontínuo. Como é que nós passamos de uma situação para outra? Estabelecendo corredores, interligados uns aos outros. Não há plano de desenvolvimento sustentável sem agricultura.
Qual é o futuro da paisagem?
O futuro da paisagem está intimamente relacionado com o nosso futuro. A paisagem não é um ordenamento, não é um bilhete postal ilustrado, não é uma fonte de receita por si própria, representa a identidade cultural do País e a natureza equilibrada de instalação da população. O futuro da paisagem está comprometido pela agricultura, a floresta, o urbanismo, por toda uma política que cria soluções temporárias de riqueza. Continuamos a viver do quotidiano e com uma imagem errada do país. Continuamos a viver do prestígio do carro, e agora que foi ultrapassado, é o prestígio de ter um lareira. Ou seja, aumentaram-se as necessidades, os valores que permitem a qualidade, mas não se aumentou a cultura. Eu não vejo mundo rural e mundo urbano, eu vejo a situação gravíssima da sociedade. Não temos uma sustentabilidade que nos garanta o futuro, nem que nos garanta a independência. O que é mais grave! Porque sem cultura, sem identidade cultural não há independência.
Entrevista de Luís Chaves (Minha Terra) e Maria do Rosário Aranha (INDE)
Fotos de Maria do Rosário Aranha
Publicada no Jornal Pessoas e Lugares II Série | Nº 16 | Janeiro/Fevereiro 2004
Terra Viva 2019A 3.ª edição do programa Terra Viva da Antena da TSF deu voz e ouvidos a 54 promotores e promotoras de projetos, beneficiários da Medida LEADER do PDR2020 através dos Grupos de Ação Local do Continente, entre os dias 3 de junho e 9 de julho de 2019. |
ELARD
A ELARD, constituída por redes nacionais de desenvolvimento rural, congrega Grupos de Ação Local gestores do LEADER/DLBC de 26 países europeus. A MINHA TERRA foi presidente da ELARD no biénio 2018-2019. |
54 Projetos LEADER 2014-2020 Repertório de projetos relevantes e replicáveis apoiados no âmbito da Medida 10 LEADER do Programa de Desenvolvimento Rural 2020 elaborado pela Federação Minha Terra. |
Cooperação LEADEREdição da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural e Federação Minha Terra, publicada no âmbito do projeto “Territórios em Rede II”, com o apoio do Programa para a Rede Rural Nacional. |
Agenda |
Webinário de boas-práticas sobre habitação nas áreas rurais |
2025-02-20, Evento online |
O livro “Receitas e Sabores dos Territórios Rurais”, editado pela Federação Minha Terra, compila e ilustra 245 receitas da gastronomia local de 40 territórios rurais, do Entre Douro e Minho ao Algarve.
[ETAPA RACIONAL ER4WST V:MINHATERRA.PT.5]