2021-10-15
Iniciativa "Desenvolvimento Local em Portugal - Uma História Contada na Primeira Pessoa"
Testemunho de Miguel Freitas - Presidente da Comissão de Acompanhamento do LEADER II entre 1998 e 2000.
Laços e nós que nunca se desatam!
Memórias.
Memórias de percursos longos, com altos e baixos, entre o que fomos e o que somos, onde estivemos e o que fizemos, entretanto, o que ficou. Memórias, sempre difíceis de reescrever, umas porque se perderam, outras só porque teimam em ficar onde estão, outras, ainda, que de tão boas que são, surgem de tal forma fulgurante que não sabemos se foram tal e qual como as vemos e sentimos ou objeto da nossa imaginação. Memórias e rugas fazem o seu caminho e são parte de nós com que aprendemos a viver. Confesso: raramente regresso ao mesmo lugar à procura de emoções e sensações que vivi ou que perdi. Acredito muito mais no futuro do que no passado.
E, de repente, alguém puxa por nós em jeito de desafio e nos pede, num tom muito leve e irrecusável, e por motivos de celebração de algo superior, que sejamos capazes de partilhar memórias. Neste caso, memórias felizes, onde reencontro, sem esforço, rostos feitos de olhares profundos e risos abertos, cheios de brilho e de espanto, à procura de horizontes longínquos, num movimento nem sempre sincronizado mas de passos convictos, de quem sabe que a aventura e o risco são parte de um território que nos apela e, apesar das incertezas, das intrusões, dos obstáculos e das desilusões, avança e avança, com pequenos projetos de todos os que se juntam e empreendem e ganha estatuto de marcante e indispensável. É este o registo mais impressivo das minhas memórias com o movimento de desenvolvimento local em Portugal.
Os rostos têm nomes, mas são tantos e tão importantes aqueles com quem convivi que se alguns citasse me arriscaria a deixar muitos de fora. Por isso e só por isso, não farei qualquer alusão nem destaque. Mas se alguns deles tiverem a paciência de ler este testemunho tenho a certeza de que se vão rever nele. Os momentos de cumplicidade e partilha foram tantos e tão fortes. Terei de deixar alguns, os que a minha memória permitir, sem qualquer sentido cronológico ou de relevo.
Devo começar por afirmar que o movimento de desenvolvimento local e o programa LEADER foi o lugar onde mais aprendi sobre a necessidade da participação para a ação, do método para a escolha, do envolvimento para a concretização, da organização para o objetivo comum. Há conceitos que me perseguem desde então: “bottom-up”; “focus grupo”; “territorialização”; “subvenção global”. Traduzindo: potenciar a energia que transmite o local, ouvir e aprender com os outros, conhecer e trabalhar no concreto, ter confiança e dar segurança aos que fazem. Procurei aplicar estes princípios ao longo dos muitos percursos que fiz.
Certamente, partilhar um momento de fundação é sempre algo relevante. Aconteceu estar como Diretor-Geral do Desenvolvimento Rural quando se concretizou a vontade de um conjunto alargado de associações de constituir a Federação “Minha Terra”. Se a memória não me atraiçoa, houve algumas conversas que antecederam essa decisão, em que me foi transmitido o entusiasmo dos que estavam por trás desse evento criativo. Nunca deixei de ouvir e procurar corresponder ao que esperavam de mim.
De tanto ouvir e partilhar - é certo que foi sempre fácil com a mesa carregada de guloseimas - há um outro evento para memória futura: a “Mostra do Mundo Rural”, que se realizou na FIL, em Lisboa, onde se receberam o Presidente da República, Jorge Sampaio, entre vários membros do Governo. Decorria o LEADER II e foi, de facto, um momento de grande afirmação da capacidade de fazer do movimento de desenvolvimento local português e dos seus extraordinários dirigentes e técnicos. Tenho muito orgulho em ter lá estado.
E, como se fosse possível conseguir melhor, na mesma semana, pude testemunhar nos Açores como se organizou a mais mirabolante Comissão de Acompanhamento do LEADER, a começar no Faial, com uma mesa sobre um tapete de flores inesquecível, uma viagem tormentosa de barco entre ilhas que nos ligou ainda mais, visitas a projetos impensáveis, de iniciativa pública e privada, e, em cada momento, a simpatia de quem sabe acolher com simplicidade, mas com enorme generosidade. Desde aí, nunca mais desliguei dos Açores.
Foi com o programa LEADER e os seus protagonistas que dei volta ao país, que conheci o interior e o interior do interior, onde vi projetos nascidos de sonhos de gente simples mas de coração enorme com quem tive o privilégio de estar, de viver momentos fugazes mas ricos de estórias contadas na primeira pessoa, de saber como se pode recuperar património com alma por dentro, como se podem criar experiências inovadoras a partir das coisas mais singelas, como se pode melhorar a vida de alguém com um pequeno apoio bem orientado, como se pode vencer a última fronteira do abandono.
Neste percurso tenho uma experiência notável, inesquecível, partilhada com uma associação de desenvolvimento local do Alentejo e com o gestor do LEADER II, o Engenheiro Nuno Jordão, de uma ida a Tiznit, no sul de Marrocos, que vos deixo, pois foi outra lição que me ficou para a vida. Numa visita a um projeto de regadio, numa aldeia recôndita, onde nos explicaram como tinham conseguido instalar um olival comunitário de cerca de 5000 hectares, numa zona pré-desértica, com um extraordinário trabalho de emparcelamento e mobilização de financiamento junto dos emigrantes espalhados pela europa, a certa altura interpelei o “aguadeiro” – o homem que era responsável pela separação de águas - perguntando-lhe o que mais precisava para dar cumprimento à sua missão de vigilante daquele precioso recurso. Com olhos vivos, pediu-me um “casquete” com uma lâmpada para levar na cabeça e assim libertar a mão da lanterna, para poder usar melhor o pau contra os “ladrões de água”. Fantástico: só aquele homem sabia a tecnologia que lhe podia mudar a vida. Tão simples que é. As respostas adaptativas do desenvolvimento local são universais. Chegados a Lisboa, solicitei que fosse comprado e enviado o capacete. Encontraria, mais tarde, o jovem dirigente dessa cooperativa no pavilhão das ADL na Ovibeja. Tinha ficado uma ligação de cooperação entre estas terras distantes, mas tão semelhantes.
Foi, assim, que cresceu em mim o intenso mundo das pequenas coisas e o espaço rural inundou definitivamente a minha vida. Já não via apenas as árvores, os pastos e as espigas...
...Contavam muito mais as pessoas e os seus empreendimentos. Deixei de ser um produtivista agrícola que a escola tinha feito de mim e passei a olhar as paisagens com pessoas lá dentro. Ganhei um sentido novo para a forma como se olha para os recursos, naturais ou produzidos, como se mistura eficiência e resiliência, ecologia e economia, numa nova visão ecosocial. Em suma, nunca mais fui o mesmo.
Os laços e nós que construi com as associações de desenvolvimento local nunca se desataram. Por onde estive, como gestor do Programa das Baixas Densidades, na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região do Algarve até à implementação do Plano de Ação de Desenvolvimento de Recursos Endógenos - PADRE, quando passei pela AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve, as parcerias encontradas tiveram sempre chancela das ADL. Neste percurso, foram muitas as relações que se consolidaram, muitas as conversas e a troca de pontos de vista, muitas as concordâncias e as discordâncias sobre os caminhos percorridos. Mas nunca diminuiu a profunda admiração que tenho pelo trabalho do movimento local em Portugal.
Interrompida precocemente a experiência na Direção-Geral do Desenvolvimento Rural, não conseguimos concretizar na sua plenitude as ideias que estávamos a trabalhar em conjunto, em particular com a Federação “Minha Terra”, para o LEADER+. Com a incorporação do programa no mainstream e sem a sensibilidade política de perceber que este movimento precisa de autonomia responsável, alguma coisa se foi perdendo de inspiração e fulgor. Aquela vontade de mexer e mudar o mundo foi-se adaptando e o sentido de transformação foi sendo secundarizado. O movimento entusiasmante de animação fechou-se em estruturas mais-ou-menos rígidas de administração público-privada, da interface pujante e irreverente foi restando a burocrática intermediação de fundos. Não se perdeu o sentido de entrajuda, mas alguma da originalidade ficou para trás.
Da passagem pela Secretaria de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural houve a retoma das relações a nível nacional, dos encontros em Vinhais e em Évora, das múltiplas reuniões e das muitas conversas informais. Reconheço que não foi um tempo tão virtuoso como poderia ter sido, por exclusiva responsabilidade minha. A agenda florestal absorveu quase por completo esse tempo. É certo, também, que o momento não dava muito espaço à criatividade pois o PDR2020 estava numa fase muito adiantada de compromissos e a margem de manobra das associações quase fechada. No entanto, criaram-se condições para alargar a influência do movimento em programas como os Jovens Empresários Rurais, a Agricultura Familiar e a
diversificação de atividades no domínio florestal.
Mas, verdadeiramente, o que importa é o presente futuro, já que estamos num momento de ruturas profundas, onde creio que o papel do movimento de desenvolvimento local se pode projetar e ganhar folgo para imensos voos, porque muitas das ideias defendidas e ideais preconizados fazem parte deste novo tempo em construção, em que o empreendedorismo económico e social tem de integrar princípios de humanismo, justiça, colaboração e solidariedade, em que a multifuncionalidade e a pluriatividade são alicerce de projetos e ações, em que a ecologia reposiciona e faz reconsiderar o valor do glocal, em que se reinventa o valor da proximidade e a criação de “comunidades intimas” entre o rural e o urbano, em que a capacidade de comunicação e compreensão se expande do físico ao virtual e sente-se que o impossível é alcançável.
É um tempo de esperança! Acredito que temos de retomar o caminho, ainda com mais convicção. O movimento de desenvolvimento local em Portugal, a partir das experiências que vivenciou, dos inúmeros projetos em que se encontra envolvido, do património e identidade que criou, da parte que já faz da consciência coletiva, tem um espaço enorme de oportunidades para crescer e para se reafirmar como um protagonista de transição, simbiose e mudança, com o sentido de sempre: tradição, integração e inovação.
Miguel Freitas
Memórias (contidas) de um amigo de sempre.
Terra Viva 2019A 3.ª edição do programa Terra Viva da Antena da TSF deu voz e ouvidos a 54 promotores e promotoras de projetos, beneficiários da Medida LEADER do PDR2020 através dos Grupos de Ação Local do Continente, entre os dias 3 de junho e 9 de julho de 2019. |
ELARD
A ELARD, constituída por redes nacionais de desenvolvimento rural, congrega Grupos de Ação Local gestores do LEADER/DLBC de 26 países europeus. A MINHA TERRA foi presidente da ELARD no biénio 2018-2019. |
54 Projetos LEADER 2014-2020 Repertório de projetos relevantes e replicáveis apoiados no âmbito da Medida 10 LEADER do Programa de Desenvolvimento Rural 2020 elaborado pela Federação Minha Terra. |
Cooperação LEADEREdição da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural e Federação Minha Terra, publicada no âmbito do projeto “Territórios em Rede II”, com o apoio do Programa para a Rede Rural Nacional. |
O livro “Receitas e Sabores dos Territórios Rurais”, editado pela Federação Minha Terra, compila e ilustra 245 receitas da gastronomia local de 40 territórios rurais, do Entre Douro e Minho ao Algarve.
[ETAPA RACIONAL ER4WST V:MINHATERRA.PT.5]